Felícia Picanço
E
m janeiro de 2024, um artigo do Financial Times apontou que, entre os jovens de diferentes países como Alemanha, Coreia do Sul, EUA e Reino Unido, os homens vêm se tornando mais conservadores e as mulheres, na mesma faixa etária, estão mais liberais.
O artigo viralizou e colocou em evidência as pesquisas sobre valores. Os comentários que se seguiram variaram entre desacreditar os dados e analisar o que eles podem expressar. As análises apontaram que os achados evidenciam a reação conservadora dos homens mais jovens frente a maior liberdade das mulheres.
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Os exemplos para o Brasil são fartos: meninas engajadas nas lutas pelo direito ao aborto, campanhas do “não é não”, marchas das vadias, enquanto os meninos surgem como envolvidos em comunidades de ataque a mulheres, manipulação de vídeos com inteligência artificial para difamar meninas e por aí vai.
Houve também aqueles que trouxeram evidências de outras pesquisas para mostrar que o fenômeno da adesão ao conservadorismo, liberalismo e igualitarismo pode ter outros resultados em função das variáveis escolhidas como indicador.
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Pesquisas de opinião
As pesquisas de opinião são baseadas em uma amostra da população definida a partir de critérios estatísticos e são fontes essenciais para conhecermos como pensa a população de um país, estado, cidade ou até mesmo de uma instituição. Indagar o que as pessoas pensam a partir de questões opinativas sobre temas de política, economia, segurança, costumes, ideais de justiça, igualdade, entre outras, é uma forma de medir os valores.
Os valores são ideais abstratos que funcionam como princípios orientadores de ações e comportamentos dos indivíduos e das avaliações que fazem sobre os outros. Embora não sejam imutáveis, são duradouros e transcendem as situações cotidianas que vivemos. Mas, vale lembrar, nós hierarquizamos os valores de modo que a importância de um valor não é a mesma que a de outro.
Há quem se contraponha às pesquisas de opinião, invocando a superficialidade de suas perguntas e a incapacidade de compreenderem a complexidade das formas concretas do modo de pensar e agir, uma vez que as pessoas podem mudar de opinião e agir de forma diferente segundo situações vividas.
Também há aqueles que não acreditam na veracidade da resposta dada a uma pessoa desconhecida que está aplicando o questionário, o respondente pode simplesmente mentir. Se levarmos tais argumentos em consideração, nenhuma ciência social seria possível, pois as palavras faladas, silenciadas, escritas, cantadas e quantificadas são formas de expressar emoções, sentimentos, pensamentos, ideias e valores estimuladas pelas experiências. O questionário é uma experiência e, como tal, a cada pesquisa as perguntas mudam em função do que se quer saber e como fazer perguntas para saber o que se quer.
Podemos mensurar opiniões sobre um mesmo tema a partir de perguntas diferentes, o que pode levar a resultados diferentes. Por exemplo, se a pesquisa quer medir a aceitação do aborto em uma determinada população, é possível fazer isso de diferentes formas.
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Podemos fazer uma única pergunta: “você é a favor ou contra o aborto?” Ou fazer múltiplas perguntas: a) “Você é a favor ou contra que uma mulher que foi estuprada e engravidou tenha direito ao aborto?”, b) “Você é a favor ou contra que uma mulher grávida de um bebê com anencefalia tenha direito ao aborto?”, c) “Você é a favor ou contra que uma mulher que engravidou mas não deseja ter o bebê tenha direito ao aborto?”.
As pesquisas amostrais que mensuram valores amadureceram nas últimas cinco décadas pelas iniciativas de grupos interdisciplinares e interinstitucionais que foram capazes de desenvolver metodologias, construir questionários baseados em perguntas muito bem formuladas, produzir dados com regularidade que permitem a comparação ao longo do tempo e entre os países, e enfrentar os desafios dessa empreitada.
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Brasil avança em valores de gênero
O International Social Survey Programme (ISSP), sediado no Leibnz Institute for Social Science (GESIS), é um dos principais grupos no mundo que realiza pesquisas de opinião regulares com base em módulos temáticos. A cada ano um dos temas é escolhido e, com isso, é possível explorar mais questões.
O Brasil foi filiado ao ISSP em 2002, quando participou da 3ª rodada do Módulo “Family and Changing Gender Roles” (FCGR), que mensura valores de gênero. A 4ª rodada foi realizada em 2012. Em 2016, ainda que o país não estivesse filiado ao ISSP, pesquisadoras brasileiras utilizaram o questionário da 4ª rodada como referência e realizaram uma nova pesquisa. Os resultados foram analisados em perspectiva comparada ao longo do tempo e com outros países (Araújo et al, 2018; Araújo, C., Picanço, F. e Cano, I., 2019; Picanço e Araújo, 2020).
Os dados indicam que, em relação às percepções de gênero, os brasileiros estão mais igualitários. Em 2002, 51,7% dos homens e 44,4% das mulheres concordavam com a seguinte afirmação: “o trabalho do homem é ganhar dinheiro, o trabalho da mulher é cuidar da casa e da família”. Em 2016, os percentuais caíram para 36,4% e 27,7%, respectivamente.
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A concordância com a afirmação “os homens deveriam dividir igualmente com as mulheres todas as tarefas domésticas” já era majoritária tanto para homens (68,8%) quanto para as mulheres (79,6%) em 2002. Em 2016, ganha mais adesão ainda: 81,1% entre os homens e 93,2% entre as mulheres. O Brasil avançou em termos dos valores de gênero, mas homens e mulheres seguem discrepantes.
Mas o que vem acontecendo no Brasil e no mundo no contexto de pós-pandemia do COVID-19, que penalizou mais intensamente as mulheres? E o acirramento da disputa pública entre valores morais tradicionais e igualitários em relação ao gênero e família, nomeada “onda conservadora” ou neoconservadorismo?
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A 5ª rodada do módulo FCGR está em campo (2022-2024) nos países filiados ao ISSP. A realização do survey em 2024 vai inserir o Brasil novamente na comparação internacional e permitirá observar se e como, no contexto de pós-pandemia do COVID-19 e da “onda conservadora”, as percepções de papéis de gênero, a divisão do trabalho doméstico e de cuidados, e a inserção das mulheres no mercado de trabalho foram afetadas em 39 países, entre eles o Brasil.
Além do do survey, pesquisadoras de UFRJ, UERJ, UFSM, UFRRJ, UNIRIO, UFPB, UFSC e UFRN vão realizar um trabalho de campo qualitativo em quatro cidades: Natal (RN), João Pessoa (PB), Rio de Janeiro (RJ) e Santa Maria (RS). O objetivo é trazer elementos que não são captados pelas pesquisas de opinião, como experiência emocional, acesso a serviços, equipamentos de saúde e educação, circulação das pessoas entre os equipamentos e os circuitos de cuidado.
Teremos, portanto, novos dados sobre valores de gênero, que permitirão acompanhar o Brasil por duas décadas, e uma compreensão qualitativa das experiências cotidianas em relação ao trabalho doméstico e de cuidados.
Sejam bem-vindas e bem-vindos a esta nova jornada dos estudos sobre família, gênero, valores e práticas!
Referências bibliográficas
Araújo, Clara, Andréa de Sousa Gama, Felícia Picanço, and Ignacio Cano, eds. Gênero, família, e trabalho no Brasil do século xxi: mudanças e permanências. Gramma Editora, 2018. ARAÚJO, Clara;
PICANÇO, Felícia; CANO, Ignácio. Onde as desigualdades de gênero se escondem? Rio de Janeiro: Gramma, 2019. PICANÇO, Felícia;
ARÁUJO, Clara. Conflitos desiguais: homens e mulheres na articulação casa-trabalho no Brasil. Século XXI: revista de ciências sociais, v. 9, n. 3, p. 720-749, 2020